ALGUMA LEITURA DE SEIS HAICAIS
Para o poeta o haicai vem de sua experiência, que poderá ser recuperada pelo leitor ou por outras leituras que a evocação do poema permitir. Esse o diálogo a que se refere mestre Masuda Goga.**
O haicai tem um quê de eterno carregado da impermanência retratada em seu
registro. Uma vez realizado e publicado, o haicai pertence ao mundo da leitura, dos que amam poesia e sabem distinguí-lo no que tem de específico.
Para mim ler haicais traz um prazer diferente do escrevê-lo. Infelizmente tem-se insistido demasiadamente no feitio do haicai e muito pouco em sua leitura. Temos mais fazedores de haicai do que leitores; e, pior, a maioria dos fazedores não estão nem aí para a leitura do haicaí (e não me refiro à teoria e à técnica).
Faço abaixo breves comentários de minha leitura de haicais que escolhi do livro digital ARAUCÁRIA - haicai de primavera 2021. Espero que o levem a ler os 15 haicais de cada autor.
Alexander Pasqual:
pipas no campinho
o cachorro brincalhão
sem guia e coleira
Cenário: o campinho onde a gurizada joga bola transformado em espaço aéreo das pipas. Mas é no chão que o poeta vê a cena motivada pelas pipas. E nem precisava da palavra “brincalhão”, pois o terceiro verso já indica o que, em parte, faz a alegria desse cão: correr em volta dos guris que correm com suas pipas. O foco no kigo permanece pois afinal soltar pipas faz a alegria até de um cachorro.
Alvaro Posselt:
Dia de Finados —
Mais um membro da família
nas fotos do túmulo
“Dia de Finados” é um tema rico para o haicai, e bons poemas pode-se ler no repertório dos poetas. Este poema é um deles. Aqui a metonímia é utilizada com delicadeza para sugerir o sentimento de perda e saudades que o detalhe simples evoca na linha do tempo da vida em família.
Carlos Martins:
No final do túnel
um pedacinho do céu
A névoa na serra
Como registrar alguma vivência com “névoa”? Para o poeta do haicai acostumado a observar a natureza à sua volta ela pode estar justamente quando começa a se dissipar na saída do túnel. O olhar aguçado do poeta capta um pouco de azul sem usar o lugar comum “no meio da névoa”.
José Marins:
lá vem o gari
tem amarelo das flores
de ipê nos sapatos
Quem presta atenção a um gari mesmo metido em uniforme de cor laranja? O que eles fazem com tantas flores de ipês caídas nas calçadas? O gari das ruas próximas de minha casa, não as varre, deixa-as para serem admiradas ou pisadas até que, ao invés dos sapatos deixarem rastros, eles as carreguem até se perderem por onde passam.
Regina Alonso
Azul, tanto azul…
Flores de jacarandá
ao sair do túnel
Outro azul na saída do túnel! Agora são as flores azuis ou lilases do jacaradá (mimoso?) avistadas pela poeta. Ainda que “tanto azul…” tente reforçar a percepção da cor é a fugacidade dessa experiência que mais chama a atenção do leitor ao se dar com o desfecho inesperado “ao sair do túnel”.
Rose Mendes
dia de finados —
mulher acende uma vela
que o vento apaga
Aqui a mulher pode ser a poeta como alguém que ela observou, mas não se pode dizer “tanto faz”, pois para o haicai fica essa mulher e não outra, nenhuma outra. A sensibilidade desse instante poético também remete a um sentimento de compaixão tão provável nesse dia e sugerido sem pieguismo (como adverte mestre Goga).
Disponível em:
https://thehaikufoundation.org/omeka/items/show/6320
** Os Dez Mandamentos do Haicai - Masuda Goga
Em: https://www.kakinet.com/caqui/dezmand.shtml
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